Ele se olha no espelho e fecha o último botão da farda. Vacila, antes
de se despedir com um beijo breve da mulher que ainda dorme. Discutiram
feio, outra vez, sobre despesas da casa. A filha se separou, os netos
estão com eles, é uma alegria, mas aumenta o rombo nas contas já
difíceis de honrar. O beijo é tão breve quanto necessário e ela resmunga
algo quase incompreensível. Que ele sabe, é a mesma frase há vinte e
nove anos. “Vê se volta”. No outro lado da cidade, a moça entrega o
fuzil, as munições, o bastão, os documentos das ocorrências daquela
noite tensa de brigas, tiroteios e acidentes incompreensíveis. Pensa no
ônibus, precisa correr. Olha as unhas que pedem retoque urgente e passa
uma água no rosto para se manter bem acordada. Não quer ser traída pelo
sono e virar alvo no caminho de casa. Ainda tem prova na faculdade. As
olheiras talvez lhe emprestem mais do que os vinte e cinco anos de
idade, mas de fato, por dentro, ela pensa que envelheceu uma década
naqueles quatro anos de profissão.
Da janela do apartamento ele tenta, mas há muito não segura as
lágrimas pesadas, doídas. A visão turva reconhece, no costume, o
sargento veterano que foi seu comandante chegar para o turno, a jovem
soldado sair apressada para o ponto de ônibus. Ouve as saudações dos
outros, a alegria de estarem ali, mesmo sabendo que pode ser a última
vez. Só queria poder estar lá. Foi reformado por invalidez após um
assalto. Saiu do quartel e ia ao mercado, a farda no banco do carona, os
bandidos viram, desistiram do carro, mas lhe deram dois tiros. “É
polícia! Perdeu!”. Sobreviveu por milagre. A farda. Sua honra, seu alvo.
Amava ser policial militar, sonho de menino criado ali, perto de tantos
colegas do pai, falecido pouco antes da sua formatura. Sente a mão
cansada da mãe em seu ombro pedindo que tome os remédios que lhes
consomem quase toda a pensão. Chora mais. Aos trinta e quatro anos, sem
olfato nem paladar, entrevado numa cadeira de rodas, a depressão era um
monstro que não conseguia vencer.
Há 181 anos, gaúchos e gaúchas vestem a farda da Brigada Militar e
oferecem a vida pela bandeira do seu estado. Jovens sonhadores ou
veteranos curtidos da peleja. Muitos tombaram. Outros nunca mais tiveram
sua vida normal. Mas essa gente simples, do campo e da cidade, segue,
geração após geração, a se vestir para a batalha todos os dias e noites.
E correm para salvar vítimas de todo tipo de violência. Vão ao encontro
de brigas, pedradas, facas, tiros e explosões. Um policial militar se
farda e se equipa para enfrentar a discórdia e a ganância, o ódio e o
medo, a prepotência e o preconceito. Para tentar restabelecer a paz e
encaminhar alguma justiça. Só que isto cobra, com frequência, um preço
muito alto. Mas o risco é assumido. O pior de tudo talvez seja, ainda, a
incompreensão.
Oscar Bessi Filho
Fonte:
Oscar Bessi Filho nasceu na cidade de Porto Alegre, em 04 de setembro de 1970. É autor dos livros "O outro lado do caleidoscópio", "Um caminho no meio das pedras", "Marx não foi à praia" e "O silêncio mais profundo", entre outros.
É capitão da BM. Mais em www.oscarbessi.com.br