Os endividados: Mecanismos que levam as compras por impulso


Psicologia
O cérebro, esse perdulário

Novas pesquisas prometem revolucionar a economia ao desvendar os mecanismos que levam as compras por impulso.
Muita gente se assusta com a fatura do cartão de crédito e fica imaginando como pôde acumular tantos gastos extras no mês. Antes de se deixar moer pela culpa, é bom se inteirar de uma das últimas descobertas da ciência – gastar além da conta faz parte da natureza humana. Há pelo menos dois séculos a economia parte da premissa de que as pessoas são livres para fazer as escolhas que julgam mais adequadas a sua vida financeira e, nesses momentos, agem com o máximo de racionalidade. É dessa forma que elas estipulam quanto gastar no supermercado, planejam a compra de um carro novo e decidem como poupar para a aposentadoria. Os princípios econômicos estão prestes a sofrer uma revisão radical. Imagens feitas com as novas técnicas de ressonância magnética revelam que, em assuntos ligados a dinheiro, o cérebro do consumidor de hoje funciona de forma bem diferente do que se pensava. Na hora de fazer compras, a emoção concorre em igualdade de condições com a razão e, freqüentemente, a sobrepuja. As compras por impulso, às vezes vistas como gestos irresponsáveis que geram dívidas dolorosas no cartão de crédito, na verdade resultam de um processo químico cerebral que foge à consciência.

Essas são algumas das conclusões da mais espetacular pesquisa já realizada sobre os processos cerebrais associados às decisões que envolvem dinheiro. O estudo, realizado por economistas e psicólogos das universidades Carnegie Mellon e Stanford e do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, dos Estados Unidos, reuniu 26 voluntários expostos a simulações de compra numa tela de computador. Cada um deles tinha um crédito de 20 dólares para gastar – ou levar para casa no bolso. Primeiro se expunha um produto, como uma caixa de chocolates e um DVD do seriado Sex and the City. Quatro segundos depois, surgia na tela o preço do produto. Na etapa final, os voluntários tinham também quatro segundos para decidir se compravam ou não cada item. Uma máquina de ressonância magnética analisava o nível de atividade de várias regiões do cérebro de cada voluntário, tomando como base o fluxo de sangue e o consumo de oxigênio. As conclusões foram surpreendentes. Tradicionalmente, a economia enxerga o consumidor como alguém que decide entre a satisfação imediata em fazer uma compra e a expectativa de usar o dinheiro futuramente para adquirir outro produto ou realizar um projeto. Essa seria uma decisão puramente racional, em que a emoção está ausente. Os participantes da pesquisa, no entanto, segundo mostrou a evolução dos estímulos em diferentes partes do cérebro, associavam a desistência de adquirir um produto não à perspectiva de usar melhor aquele dinheiro no futuro, mas à aflição e ao sofrimento que significaria desembolsar a quantia necessária para
fazer a compra.

A pesquisa americana pode significar uma revolução nas estratégias utilizadas pelo comércio. Seus resultados indicam que a definição clássica de consumidor já não serve aos tempos atuais. A emoção influencia fortemente as decisões de compra do consumidor do século XXI, mesmo quando ele acha que está sendo guiado pela razão. Os cientistas que conduziram o estudo avaliam que essa mudança é responsável pela tendência crescente de realizar compras por impulso e acumular dívidas no cartão de crédito. Se o pagamento é feito com dinheiro, o córtex insular, região cerebral que processa os acontecimentos desagradáveis, transmite a informação de que a compra representou uma perda financeira. Quando se usa o cartão, a sensação que o cérebro registra é a de que o produto não custou nada. "O adiamento da hora de pagar pela compra anestesia os consumidores contra o sofrimento de ter de desembolsar dinheiro", escrevem os autores da pesquisa. No futuro próximo, é possível que esse novo perfil de consumidor tenha de ser levado em conta na hora de elaborar políticas econômicas voltadas à poupança. "Mais à frente, pesquisas como essa ajudarão os governos e a sociedade a se orientar nos investimentos em habitação, educação e aposentadoria", disse a VEJA o economista Colin Camerer, do laboratório de neuroeconomia do Instituto de Tecnologia da Califórnia (CalTech).

Os especialistas em marketing dizem que, na prática, a mudança no perfil do consumidor vem sendo observada nas últimas duas décadas e se deve à transformação do mercado onde ele circula. A oferta de produtos nas lojas cresce exponencialmente, os preços de objetos do desejo que antes só eram acessíveis aos ricos, como os eletroeletrônicos de luxo, não param de cair, e o crédito se torna cada vez mais fácil e elástico. "A maior oferta de produtos no mercado, somada à redução do tempo para absorver toda a informação disponível, causada pela correria da vida moderna, criou um consumidor ansioso, que nunca está satisfeito com o que tem e sempre está de olho no próximo lançamento", avalia Mário René Schweriner, coordenador do curso de pós-graduação em ciências do consumo aplicadas da Escola Superior de Propaganda e
Marketing (ESPM). As próprias lojas se adaptaram ao consumidor que compra por impulso, aplicando lições de especialistas em vendas para turbinar os negócios. Estatísticas comprovam que, ao entrar num supermercado, o cliente tende a se dirigir para as gôndolas da direita, talvez porque a maioria das pessoas seja destra. Por isso, nesses estabelecimentos, os produtos mais caros e suscetíveis às compras guiadas por ímpetos emocionais ficam à direita da entrada.

As compras por impulso são hoje um fenômeno estudado com crescente interesse. Nos Estados Unidos, uma pesquisa da consultoria de internet User Interface Engineering avalia que 34% das compras feitas on-line são de produtos que o consumidor não planejava adquirir ao entrar nos sites das lojas virtuais. No Brasil, o instituto de pesquisas de mercado Sense Envirosell calcula que 15% das compras feitas em supermercados são por impulso. Segundo o instituto, esse é um fenômeno recente – até o Plano Real, as compras guiadas apenas pela emoção não passavam de 5%. Diz José Augusto Domingues, sócio-diretor da Sense Envirosell: "O Brasil vive hoje um fenômeno conhecido no mercado mundial como new money (dinheiro novo), que ocorre nos países emergentes. Quando a economia melhora e a renda per capita sobe, a tendência é que a população compre mais do que precisa, principalmente produtos que ela não compraria normalmente".

A publicidade, é claro, também está engajada na briga por capturar o consumidor que compra por impulso. Até duas décadas atrás, o principal mote dos comerciais era a descrição detalhada do produto e de suas vantagens. "Hoje, a propaganda é muito menos informativa e mais ligada às emoções das pessoas", diz Schweriner, da ESPM. "Cereais e margarinas são associados à imagem da família feliz, e os eletrodomésticos, à da mulher que trabalha fora e cuida da casa ao mesmo tempo", ele completa. A recente pesquisa americana que usa imagens do cérebro comprova que existe um novo consumidor em um novo mercado. Alguns cientistas, porém, avaliam que o fenômeno das compras por impulso está mais entranhado na natureza humana do que se supõe. O psiquiatra Jonathan Cohen, diretor do centro de estudos do cérebro, mente e comportamento da Universidade Princeton, acha que sua explicação remonta à pré-história da espécie. Disse ele a VEJA: "Há milhares de anos, o futuro não tinha muito valor para a humanidade. O mais racional era usar tudo imediatamente, fosse um alimento ou um pedaço de pau. Aos poucos, o cérebro tornou-se capaz de reconhecer a utilidade das projeções para o futuro. Mas as regiões cerebrais responsáveis pelo impulso continuam existindo e dizendo às pessoas para consumir imediatamente. O que leva o impulso a vencer a razão o que estamos tentando entender com as novas pesquisas.

FONTE: VEJA.com.br