IMPRENSA E PODER


1. A imprensa parece destinada a conviver com a ambigüidade em vários setores, e isso não por acaso, mas em função de seu papel mediador, dividida entre dois ou mais domínios distintos, duas ou mais solicitações, por vezes, contraditórias. Sempre que a mediação não obedece a normas rígidas, ela cai na ambigüidade. Não que a imprensa não se imponha certas normas e não procure respeitá-las, mas não são normas rígidas e imperiosas como as que sujeitam o juiz à decisão de uma causa, por exemplo. A imprensa, que é a arte da comunicação exercida por meio dos veículos de massa, encontra seu patrono em Hermes (Mercúrio), o deus mensageiro, velocíssimo, com asas nos pés, que podia viajar por toda a parte num piscar de olhos (Mircea Eliade). Hermes era o menos olímpico dos deuses; gostava de misturar-se com todos, sabia indicar aos viajantes o caminho certo, mas também se divertia em enganar os outros. Um deus meio sem-vergonha. Certa vez, advertido por Zeus, seu pai, de que não deveria mentir nunca, respondeu-lhe, atrevidamente, que tudo bem, mas mesmo assim ele não estava obrigado a dizer a verdade por inteiro...

A primeira grande ambigüidade da imprensa, do jornalismo, diz respeito à História. Geralmente, pensa-se que o jornal é o registro diário da História, e o próprio jornal é o primeiro a fazer acreditar nisso, mas não é bem assim. O que o jornal registra é a atualidade, o flagrante do que está ocorrendo, e em seus arquivos armazena a memória dos séculos. Agora mesmo, por ocasião deste final de século e de milênio, os jornais, as revistas, as televisões editam retrospectivas completas dos últimos 100 ou 2000 anos. Mas será a História uma questão só de memória? Parece que não. História é, sobretudo, a compreensão dos fatos em sua trama, em seu tempo-espaço, em seus personagens, o que exige seleção, análise, reflexão. Será a História questão de flagrante? Existem fenômenos históricos substantivos, de conseqüências ilimitadas, que jamais afloram como flagrante na atualidade e, por isso, escapam ao registro jornalístico. Se na Renascença existissem tantos jornais como hoje, nenhum deles noticiaria que "foi descoberta a beleza da paisagem" ou que "a natureza tem estrutura matemática" (Marías). Muita coisa de suma importância estará acontecendo agora que não chega às manchetes, e muitas coisas que os jornais anunciam com tanto alarde amanhã estarão tão esquecidas como as nuvens do ano passado. O jornal reflete o que passa, a História guarda o que fica.

Claro que é fácil falar. Jornalismo e História podem ser gêneros rigorosamente distintos, mas não é possível separá-los com tanto rigor na prática. Ao entrevistar, pela primeira vez, um futuro grande personagem, o repórter não sabe que faz História sem querer, assim como o famoso M. Jourdain fazia prosa sem saber... Eis aí um caso de ambigüidade constitutiva da qual o jornalismo não se livra, mesmo quando quer fugir dela

2. Outra ambigüidade intrínseca da imprensa é com a moral. E essa ambigüidade com a ética pode ser assim formulada: a sobrevivência de qualquer órgão de comunicação - jornal, revista, rádio ou televisão - depende da expansão crescente de seu universo de consumidores num mercado de concorrência canibalesca. Para expandi-lo e vencer a disputa, todos os meios afiguram-se válidos: em matéria noticiosa, a divulgação imediata, antes que outros passem na frente, sem apurar devidamente a procedência, e o apelo constante ao sensacionalismo; em matéria opinativa, a manipulação das consciências, a distorção dos fatos e dos valores, a adoção de novidades intelectuais de forma leviana, para não parecer antiquado; e na parte do entretenimento, a vulgaridade e o baixo nível, sob o pretexto cínico de que "é isso que o público quer". É comum as infrações morais resvalarem para o ilícito penal. Interpelada sobre os excessos cometidos, invoca-se a lei para justificar as piores agressões à lei: a liberdade de imprensa.

Claro que nem todos os órgãos de comunicação são iguais e não procedem com a mesma complacência moral, com idêntica irresponsabilidade. Mas o perigo é virtual para todos e sua ronda é permanente. A qualquer momento invade a redação e o estúdio mais zelosos e o mal está feito antes que alguém possa evitá-lo.

3. Outra ambigüidade, esta bastante saudável, desde que convenientemente matizada, é entre o jornalismo e a literatura. Recentemente, recebi consulta de um jovem estudante de um curso de jornalismo sobre o assunto. Com bastante pertinência, aponta ele o perigo do excesso de normatização do texto jornalístico, que resulta na burocratização massacrante e na perda de individualidade do trabalho jornalístico. Tem toda razão Allan de Abreu. Creio que o jornalismo atual está dominado inteiramente pelos padrões do "politicamente correto". Que há de mal com o tão falado "politicamente correto"? O que há de errado com essa categoria é que ela consagra, dogmaticamente, o que "se diz" ser o certo e o correto, sem maior acuidade e indagação crítica. O "politicamente correto" faz parte daquelas coisas que se sustentam em caráter impessoal - o que "se diz", o que "se pensa", o que "se faz", o que "se deseja" etc. É a opinião do uomo qualunque, de toda-a-gente e de ninguém.

O "politicamente correto" está articulado nos famosos "manuais de redação", garantindo linguagem uniforme, bitolada, impessoal. É a vitória da burocratização com toda sua intolerância e mediocridade, que se impõe ao velho jornalismo dos tempos heróicos, que se fazia com muita liberdade de opinião e certa dose de simpática boemia. O perfil do jornalista quarenta anos atrás era bem diferente do atual. O jornalista era, muitas vezes, um autodidata, mas dotado de sólida e extensa formação humanística, sobretudo literária, que sabia escrever, de improviso, sobre os assuntos mais variados, sem fazer feio. Hoje, esse personagem virou figura de museu, substituído por legiões de "senhoritos satisfeitos" que ocupam as redações, todos diplomados em escolas de jornalismo, que pouco ouvem os mais velhos, profissionalizados, especializados, mas sem aquele fogo sagrado de outros tempos. Culpa de um jornalismo forçado a adotar os mesmos padrões de trabalho da indústria, a organizar-se em linhas de montagem, como nas fábricas.

Ora, hoje, esse modelo de produção em linha de montagem tem sido acerbamente criticado por Domenico Demasi e outros. Chegou a hora de arejar novamente as redações com mais liberdade de espírito e de vitalizar o texto com mais um pouco de literatura. O toque literário preferencial do jornalismo não seria a ficção, não se pode fazer jornalismo ficcional; mas se pode e se deve fazer jornalismo com estilo. O estilo é o sal da palavra. Todo texto algo bem escrito tem estilo. O estilo concretiza a plenitude da palavra; é a palavra restituída à sua dignidade de sopro do espírito, e brilhando muitas vezes como a centelha da ação transformadora.

4. A mais ostensiva e a mais intrincada ambigüidade da imprensa se passa em suas relações com o poder. Ninguém ignora que quando começou a tomar força, no século XVIII, ela afirmou-se e conquistou seu território como um contrapoder. Na aurora do liberalismo, a melhor arma para lutar contra o antigo regime e a monarquia absoluta foram os jornais, abertos ou clandestinos, que se introduziam na velha sociedade como um rastilho de pólvora, contribuindo, decisivamente, para sua explosão. Foi a fase heróica da imprensa. A revolução americana, a revolução francesa e as revoluções liberais e nacionalistas que pipocaram na Europa e na América Latina, durante o século XIX, foram sempre alimentadas por ela, na qual se destacavam grandes tribunos.

No entanto, à medida que foi crescendo em prestígio e em influência, armou para si mesma uma cilada da qual não saiu mais: transformou-se, ela própria, num poder em concorrência com os poderes político e econômico, com objetivos idênticos: mandar e enriquecer-se. De tempos para cá, diz-se que a imprensa é o quarto poder, mas seria mais correto afirmar que ela se erige, hoje, no primeiro poder, ao qual os demais estão sujeitos. Não há nenhum exagero nessa colocação. As campanhas eleitorais são veiculadas nos jornais e na televisão, sem o que não atingiriam o grande público; o governo, quando quer falar a todo o país, recorre à TV; a familiaridade do público com o dia-a-dia da política é noticiada a toda hora, e comentada, pela imprensa. O exercício do poder político está atrelado à mídia, que lhe confere publicidade e eficácia, que determina sua formatação, que aprova ou reprova suas iniciativas junto ao país, ao Estado-membro, ao município. E também o poder econômico não poderia vender em massa sem o concurso diário do jornal, minuto a minuto da TV, sem a propaganda maciça, tenaz e repetitiva.

Mas o domínio da imprensa moderna não cessa aí. Vai muito mais longe ao ampliar-se a toda a extensão das coisas, das pessoas e dos fatos, a ponto de poder dizer que o que não está na mídia não está no mundo. Somente a passagem pela mídia empresta a uma coisa, a uma pessoa, a uma ocorrência foros de realidade, presença no mundo, para que se possa contar com sua existência. O que não chega à mídia não é que não tenha importância; é que não existe. É espantoso e inquietante, mas é assim. Por isso, e não por outra razão, é que dizemos que a mídia constitui em nossos dias o próprio poder, a fonte de eficácia de toda e qualquer outra modalidade de poder. A mídia conquistou direito de vida e de morte sobre os prestígios, as reputações, as avaliações e também sobre a existência. Tornou-se a medida do que é e do que não é.

Eis aí - a imprensa, que foi na origem um contrapoder, cresceu e transformou-se num poder, o poder dos poderes, atuando com força incontrastável sobre a massa e a elite de todos os países. O fenômeno é assustador, não cabendo discutir se é bom ou mau, certo ou errado. Seria impraticável e utópico pretender que a imprensa, depois de seu agigantamento, desse um passo para trás e renunciasse ao uso de suas potências. Não lhe cabe a renúncia. O que tem a fazer é perceber que sua responsabilidade aumenta na proporção direta em que cresce seu poder. Ela tem de buscar a difícil, mas não impossível, conciliação entre a aquisição de tanto poder e a vocação de contrapoder. Porque na vocação de contrapoder é que reside a razão de ser e a verdade da imprensa. Ou esta se constitui em contrapoder, ou não tem mais razão de ser. Eis aí a razão final de como a imprensa está condenada a conviver permanente e constitutivamente com a ambigüidade.

5. Conclusão - A conclusão da tese aqui exposta, talvez demasiado ousada, é uma só, e totalmente inesperada: a ambigüidade da imprensa reflete, nada mais, nada menos, do que a ambigüidade constitutiva das coisas humanas. Conta o maior pensador espanhol Ortega y Gasset que certa feita foi abordado por uma senhora que lhe cravou a pergunta: - O senhor é Ortega y Gasset? A ela ele respondeu, de pronto: - Mais ou menos, minha senhora..., querendo dizer que nenhuma pessoa se identifica totalmente consigo mesma, que ninguém esgota a realização de seu projeto vital, ficando sempre a dever muito de si mesmo. "Transforma-te em quem és", incitava Píndaro, nesse mandamento que Ortega considerava o supremo imperativo ético. Pois bem, não conseguimos nunca nos transformar totalmente em quem somos, mas só em parte, na melhor das hipóteses. O homem está vocacionado para a perfeição, mas só a alcança no plano superior da santidade, da ciência e da arte. São Francisco atinge, no amor a Deus e ao próximo, sua plenitude. Um teorema de geometria, uma equação matemática, uma cantata de Bach são perfeitos. Mas na vida pessoal, na vida moral e política, a medida do homem é sempre o mais ou menos. Poderia ser diferente no exercício da imprensa?

Em suma: a) Jornalismo e História são coisas distintas, nitidamente demarcadas em suas fronteiras, conforme procuramos mostrar, o que não impede que, na prática, coincidam. Euclides da Cunha, em Canudos, podia pensar que fazia jornalismo: na verdade, fazia História. b) A ambigüidade entre a imprensa e a moral, no regime de urgência das redações e no intrincado da estratégia de mercado, pode ser, algumas vezes, inevitável, mas deve ser corrigida com prontidão, e ostensivamente, sempre que detectada. c) Já a ambigüidade entre o jornalismo e a literatura é fecunda e produtiva, desde que dosada e disciplinada d) Finalmente, a ambigüidade da imprensa com o poder é inevitável. Mas, de nada vale à imprensa ganhar o mundo e perder a alma. A alma da imprensa está em sua vocação de contrapoder. O horizonte do contrapoder não se limita de maneira alguma ao poder constituído no governo, na situação, mas inclui, igualmente, o projeto de poder sustentado pela oposição, o poder real e o poder virtual. E não alcança somente o poder político, ampliando-se ao poder econômico, com seus abusos constantes, e ainda ao poder da indústria do sucesso, consagrando falsos valores e fraudes de todo o tipo no campo da cultura e do entretenimento.
GILBERTO KIJUWSKI
FONTE: VEJA.