ANIMAIS DOMÉSTICOS


Mordomia animal

Humanos se desdobram em luxos para
companheiros de quatro patas


Existem três tipos de ser humano: os que amam cães, os que são apaixonados por gatos e os que odeiam animais domésticos de qualquer espécie, até mesmo peixinhos dourados. Há o ódio sincero e o dissimulado. Os que os odeiam sem disfarce dizem que eles fedem, dão muito trabalho e são estúpidos como, bem, animais. Já os que dissimulam a vontade de esganar os bichos usam o pretexto demagógico como programa de partido político de que seus donos deveriam adotar uma criança pobre em vez de desperdiçar tanto dinheiro com besteiras caninas e felinas. Se você pertence ao último grupo, pule estas páginas. Elas são dedicadas aos dois primeiros tipos humanos, que estão gastando os tubos com mimos para seus companheiros de quatro patas.

Graças a essa paixão animal, o mercado brasileiro de produtos e serviços para lulus e bichanos deve movimentar até o final do ano 1,5 bilhão de dólares. A produção da indústria de ração para animais domésticos saltou de 200.000 toneladas para cerca de 500.000 no ano passado. Proliferam nas grandes cidades lojas com novidades e fricotes as chamadas pet shops, com estoque muito além dos sacos de ração, coleiras e casinhas. Cabeleireiros, dentistas, spas e até clínicas de acupuntura completam o pacote. Como há 24 milhões de cães e gatos domiciliados no país, isso significa um gasto médio anual de 62 dólares para cada quatro patas. Precisar disso tudo não precisa. As necessidades básicas dos animais domésticos costumam ser bem atendidas com água fresca, alimentação e carinho, talvez nem este último no caso dos gatos. Ocorre que num mundo de indivíduos cada vez mais isolados, os bichinhos acabam se tornando o foco de um superávit de afeto, que muitas vezes se expressa por meio do excesso de cuidados e de produtos.
O veterinário carioca Márcio Bernstein:
a acupuntura chega ao reino animal
Foto: Paulo Jares

Xodó de escritores Diga-se em favor de cães e gatos que sua amizade com os homens é muito anterior ao surgimento da família mononuclear e da sociedade de consumo. Há cerca de 10.000 anos, no período neolítico, o cão já era o melhor amigo de nossos ancestrais. Mais arredio, e talvez seduzido por um padrão de moradia superior ao da época das cavernas, o gato foi cooptado para o convívio humano lá pelos idos de 1800 a.C. Desde então, seus donos vivem como cães e gatos, com cada grupo sempre tentando provar para o outro a superioridade intelectual e sentimental de seu preferido. Para quem tem um cão, gatos são distantes, incapazes de amar e interesseiros. Para quem tem um gato, cães são bobalhões, barulhentos e não passam de cachorros.

Num breve levantamento, verifica-se que cachorros são os preferidos dos aristocratas, dos políticos o gato "Socks", do presidente americano Bill Clinton, é um parêntese na série de hóspedes caninos da Casa Branca -- e dos casais com filhos. Já os gatos costumam ser o xodó dos escritores, dos desenhistas de quadrinhos e dos casais sem rebentos (sob o argumento de que um gato dá menos trabalho do que um bebê e igual grau de satisfação). Na literatura, os gatos dão um banho, se isso não fosse uma contradição em termos. Serviram de tema para escritores como T.S. Eliot, autor do poema que virou musical da Broadway, Guy de Maupassant (que os adorava embora tenha tido de vez em quando vontade de estrangulá-los) e John Keats, entre dezenas de outros. Os cães foram à forra com a invenção do cinema. Protótipos do antiintelectualismo, Lassie, Rin-Tin-Tin e Lobo (companheiro do Vigilante Rodoviário) mostraram como a fidelidade canina pode ser algo mais do que um lugar-comum.

Na maioria, tanto cães como gatos exibem uma incrível inteligência emocional no trato com seus donos, fazendo-os descobrir qualidades insuspeitadas. O gato "Mico", da arquiteta paulista Márcia Gullo, é um exemplo de alto Q.I. felino. "Ele é carinhoso. Quando chego da rua, dá uma miadinha especial e sinaliza que está contente", diz Márcia. O bichon frisé "Mickey" soube transformar-se na grande paixão da atriz Sylvia Bandeira, com quem dorme todas as noites. "Acho que cachorro é gente, sim. É o melhor amigo do homem, um companheiro mudo que não reclama de nada", proclama Sylvia, descrevendo o tipo de afeto incondicional que deixa os humanos de quatro diante dos lulus. O fato de cães e gatos "serem gente" explica a abundância de novos serviços e produtos. Afinal de contas, eles têm direitos como qualquer consumidor bípede.

Terapia As rações, por exemplo, estão ficando cada vez mais humanizadas. Há aquelas com sabor de peru, fígado, queijo, frango e até salmão. Algumas se destinam a animais com problemas cardíacos, renais ou obesos. Aliás, cães que estão acima do peso normal podem recorrer a um spa veterinário para recuperar a forma. O In-Coelum, em Vargem Grande, no Rio de Janeiro, é um deles. Localizado em uma área de 10.000 metros quadrados, oferece aos animais pistas de exercício e adestramento, piscinas, muito espaço ao ar livre e sessões de musculação. Há cachorro e gato fazendo até acupuntura. O veterinário carioca Márcio Bernstein, especialista em medicina chinesa, atende cerca de oitenta animais por mês. "A acupuntura é eficaz em casos que vão desde artrose e hérnia de disco até complicações gastrintestinais, respiratórias e renais", explica. Quem prefere a medicina convencional dispõe de excelentes serviços. Só a Provet, uma espécie de central de diagnóstico com quatro unidades em São Paulo, atende por dia a cerca de 500 pedidos de exames laboratoriais, além de eletrocardiogramas e ecocardiografias.

Longe também vão os anos em que bastava uma carícia para deixar um bicho abanando o rabinho. A veterinária psicóloga Hannelore Fuchs ganha a vida fazendo terapia em animais. Nos últimos quinze anos, ela viu triplicar o número de bichos de estimação com problemas psicológicos. São principalmente animais fujões ou que se recusam a fazer suas necessidades nos lugares apropriados. Os casos mais graves, verificados com menor freqüência, são de cachorros muito agressivos. Em todas as situações, o tratamento é feito com o dono e o animal. "Os resultados costumam ser muito bons, mas só aparecem quando o dono está disposto a cooperar", explica a veterinária. Cada sessão de terapia dura uma hora e trinta minutos e custa entre 80 e 100 reais. Um espanto mas para muita gente a compensação afetiva oferecida por um animal de estimação pode até evitar que seu dono gaste muito mais enfrentando anos de sessões de divã. Quem já chegou em casa no silêncio de uma madrugada vazia e foi recebido pelo lulu eufórico tem motivo para acreditar nisso.
FONTE: VEJA